Sem celular na escola: alunos citam crises de abstinência, melhora nas notas e mais socialização
09/10/2024 - O Ministério da Educação apresentará um projeto de lei para vetar aparelhos em todas as escolas.
Poderia ser o começo de um “Globo Repórter”: como vivem os alunos que não podem usar celular na escola? O que fazem? Como se relacionam? Você descobrirá as respostas ao longo desta reportagem, mas já adiantamos que:
As primeiras semanas após a proibição são “um pesadelo”, com “crises de abstinência” entre os jovens e choro de bebês que não aceitam nem comer, nem trocar a fralda sem a tela.
Em pouco tempo, a maioria consegue se adaptar e passa a prestar bem mais atenção às aulas. Os menores reaprendem a brincar, e os adolescentes trocam os chats de Whatsapp por esportes e por interações “à moda antiga”, cara a cara.
“É como a saída de um vício”, afirma Maristela Costa, professora de português da escola Alef Peritz (SP), onde, há sete meses, os celulares dos alunos começaram a ser diariamente “trancados” em pochetes magnéticas.
Contexto: O Ministério da Educação (MEC) anunciou que, em outubro, lançará um projeto de lei para proibir o aparelho nos colégios do país. Embora, por enquanto, não haja uma determinação nacional, 28% das instituições de ensino urbanas e rurais já implementaram restrições rígidas em relação aos smartphones, segundo a pesquisa TIC Educação 2023, divulgada em agosto deste ano pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Para prever como será o dia a dia dos estudantes caso o PL seja aprovado, a reportagem visitou três escolas em que os estudantes não têm autorização de mexer no celular em sala de aula e durante o recreio.
Veja o que mudou na rotina deles:
Primeira etapa: revolta e resistência
- Tentativas de 'arrombamento' em pochetes
No início do ano, em São Paulo, a escola judaica Alef Peritz optou por importar dos Estados Unidos um modelo de pochete magnética, que fica trancada por meio de uma peça semelhante aos alarmes usados em lojas de roupas. Só depois da última aula, um funcionário usa um “desmagnetizador” para abrir as bolsas.
“Ficamos revoltadíssimos com a chegada das bolsinhas. Não poder usar celular nem no recreio é um pouco extremo”, diz o aluno Leo Gerchfeld, do 2º ano do ensino médio.
Segundo o coordenador Antonio Arruda, foram necessárias três semanas para que os jovens conseguissem “sofrer menos”. “Alguns sentiram abstinência do celular na hora do intervalo. Eles ficavam perguntando: ‘o que vou ficar fazendo?’”, conta.
As manifestações de desespero deixaram marcas nas pochetes – houve tentativas de “arrombamento” que estragaram o fecho delas. Nesses casos, os estudantes responsáveis foram obrigados a pagar novamente a taxa de R$ 170 para adquirir uma nova bolsinha.
Alunos do nono ano dessa escola judaica contaram que tentam usar o truque do “celular do ladrão”: colocam um aparelho antigo na pochete lacrada e deixam o “verdadeiro” escondido embaixo da mesa. Um dos meninos chegou até a tentar trancar uma caixa de baralho na bolsinha, fingindo que seria o celular. São jogadas de risco: quando flagrados, os adolescentes são suspensos.
- Bebês dependentes de tela
E não pense que o problema do vício existe apenas entre os adolescentes. Na Escola Tarsila do Amaral (SP), que atende crianças da educação infantil e do ensino fundamental I, não é permitido nem passar pela porta de entrada com tablets ou smartphones. Entre os novos alunos, principalmente bebês, já foi necessário montar um sistema de “desmame” para que conseguissem se adaptar ao cotidiano sem telas.
“Nos primeiros dias de aula, a gente descobre que determinada criança só aceita comer se estiver vendo vídeo. Sem isso, ela nem olha para o prato. Depois de conversarmos com a família, fazemos gradativamente uma transição. Oferecemos o vídeo só no comecinho e logo já substituímos por um brinquedo, como massinha. Até que tiramos tudo”, explica a coordenadora Patrícia Bignardi.
O objetivo é que o aluno aprenda que a refeição o é um momento social gostoso, de conversa com os outros amiguinhos.
- Celulares dentro de caixas
O uso de celulares em sala de aula já estava proibido nas escolas públicas municipais do Rio desde 2023. Em 2024, o decreto n° 53.918, do prefeito Eduardo Paes, endureceu a regra: os aparelhos foram banidos também na hora do intervalo. Só podem ser acessados em atividades pedagógicas específicas.
Para facilitar o controle, instituições de ensino como o GEO Martin Luther King, na zona norte da cidade, pedem que os alunos entreguem os celulares a um funcionário, que guarda tudo em uma caixa.
“Eu já vivi situações bem tristes, de você tentar impedir o uso do telefone e o aluno se comportar de uma maneira até meio assustadora”, afirma Aluisio Barreto da Silva, professor de história da rede municipal de ensino do Rio. "Um menino de 12 anos levantou, começou a chutar as cadeiras pela frente e saiu da sala.”
Um semestre após a proibição, 62% das escolas tiveram plena adesão à medida, e 38% enfrentaram dificuldades no processo de adaptação, informa a Secretaria Municipal de Educação.
Menos Whatsapp e joguinhos, mais brincadeiras e esportes
Quando a reportagem perguntou aos alunos da educação infantil e do fundamental I quem gostaria de levar o celular para a hora do recreio, as reações foram diversas: “Não! Não é coisa de criança! A gente adora brincar e ficar juntas”, gritou Clara Lemos, enquanto pulava sem parar ao lado das amigas. “Eu queria poder jogar [no celular]!!’, reclamou Lorenzo Varanelli, embora parecesse bem entretido ao montar um castelo de legos com outros meninos.
A impressão é que a Escola Tarsila do Amaral seria bem mais silenciosa se os smartphones fossem liberados. Mesmo as crianças que dizem sentir falta dos aparelhos estavam correndo, montando duelos de miniaturas de animais, cantando a música-tema da série que acompanham na TV ou pintando desenhos no jardim.
Renan Menezes, pai de Maria Carolina, de 6 anos, acredita que o fato de ninguém estar com o celular na escola seja um fator decisivo para que a menina brinque mais com as amigas.
“Em casa, ela fica com o nosso celular em poucos momentos, só para ver conteúdos de artesanato ou joguinhos infantis. A dificuldade é quando encontra outras crianças da mesma idade, que já têm seus próprios aparelhos, como o primo dela. Aí, começa a questionar: ‘por que ele tem e eu não tenho?’”, conta.
“Ela já falou que quer pedir para o Papai Noel um celular. Já expliquei que os duendes ainda não aprenderam a fazer”, brinca.
Entre os adolescentes, a dinâmica do intervalo mudou totalmente depois da proibição dos smartphones. Ninguém mais consegue conversar com amigos de fora da escola pelo Whatsapp, postar stories no Instagram ou usar os aplicativos de jogos – mas as conversas “cara a cara” e a prática de esportes tornaram-se mais frequentes.
“Foi muito difícil de se acostumar. A gente vai pegar o celular, mas não está lá, sabe? É estranho. Não dá para pagar o lanche [usando o aparelho] nem falar com os nossos pais para combinar o horário de saída. Tudo precisa falar com a coordenação, para avisarem nossa família”, diz Clara Wroclawski, aluna do ensino médio na Alef Peritz.
Ela e as amigas contam que, sete meses após a implementação das bolsinhas, já estão mais adaptadas à restrição. “A gente passou a ficar mais juntas. Todo mundo está mais junto. Porque não tem muito o que fazer, né? Agora, acabo não sentindo mais tanta falta do celular”, diz Nina Herz, da mesma turma.
Já os meninos intensificaram o uso das quadras no recreio.
“[Nosso dia] Melhorou muito, estamos jogando mais futebol, conversando. Ficou mais produtivo e divertido, mesmo a gente não percebendo isso no começo e achando que ia ser infernal”, afirma o aluno Joseph Spuch, logo após a partida terminar.
Sem as notificações, maior foco nas aulas
Os próprios estudantes reconhecem que a medida de proibir os celulares teve reflexos diretos na aprendizagem.
“Para mim, meu mundo tinha acabado. Mas a proibição foi fundamental e essencial para que a gente pudesse evoluir. Hoje, eu leio muito mais. O telefone estava tirando a minha concentração”, conta Kamilly Luanni, de 13 anos, aluna da escola municipal Martin Luther King.
Pelas dezenas de relatos colhidos, as “vilãs” das aulas eram as notificações no celular. Como continuar atento ao professor e ignorar uma mensagem?
“Quando [o aparelho] vibrava, a gente parava de prestar atenção na aula. Com o celular na caixa, dá para se concentrar melhor”, diz a estudante carioca Julia Abrahão, de 15 anos.
Em São Paulo, Joseph, do 2º ano do ensino médio, sentiu a mesma mudança. “Às vezes, tem aula em que você está muito cansado, não dormiu direito e quer mexer no celular porque é um passatempo, mas não dá. Aí, acaba prestando atenção na aula. É incômodo, porque é um vício, mas a proibição me ajudou muito na questão acadêmica.”
Os estudantes ouvidos pela reportagem contam ainda que houve uma mudança de hábitos mesmo fora do colégio: eles passaram a usar o celular menos vezes em casa. No balanço geral, o tempo diário de uso de telas chegou a cair 4 horas em relação ao período antes da proibição.
Os pais aprovaram a restrição?
Nas três escolas visitadas, houve apoio da maioria dos pais para a restrição dos celulares. Os que ficaram mais receosos focaram em três fatores:
- Comunicação com os filhos
Os responsáveis não conseguem mais trocar mensagens com os adolescentes enquanto eles estão nas aulas. Essa função, como exemplificado mais acima, ficou a cargo da própria escola, como nos velhos tempos: é a coordenação que faz o “meio de campo”. Na Escola Tarsila do Amaral, os pais que quiserem notícias das crianças podem usar o Whatsapp do colégio, para uma resposta mais ágil dos professores.
- Proteção dos celulares
Há famílias que se preocupam com a segurança dos celulares (principalmente daqueles que custam caro). Como solução, a ideia das instituições de ensino é evitar que os funcionários tenham de ficar com os aparelhos dos alunos. A bolsinha que “tranca” os smartphones pode ficar na mochila dos próprios estudantes. Já no Rio, no esquema de guardar tudo na caixa, os equipamentos ficam no campo de visão da turma inteira, para que ninguém se sinta inseguro em relação a quedas ou furtos.
- Contato com tecnologia
A coordenadora da Escola Tarsila do Amaral relata que, há alguns anos, havia uma preocupação com o letramento digital das crianças. Atualmente, elas chegam às aulas já dominando totalmente as ferramentas tecnológicas – o desafio é ensiná-las a segurar um lápis ou brincar longe das telas. Por isso, o colégio opta por propiciar pouco contato dos alunos com computadores e tablets.
Entre os alunos mais velhos, tanto no Rio quanto em São Paulo, os gadgets estão presentes no dia a dia escolar, mas apenas para fins pedagógicos. É possível usar um tablet para acompanhar a leitura de um texto, por exemplo, criar um filme a partir do telefone ou ler o enunciado da questão de matemática. Pela rede de WiFi, todos os sites de redes sociais são bloqueados.
“A escola não pode caminhar na contramão da sociedade. A gente vive num mundo conectado, e os aparatos tecnológicos podem potencializar a aprendizagem dos alunos. Não é só proibir por proibir. Nosso objetivo é equilibrar o uso desse aparelho”, explica Joana Possidônio, diretora da escola Martin Luther King.
Fonte: G1