Decorar Constituição, Drummond ou Platão vale nota mil na redação do Enem ou é tiro no pé?
08/10/2024 - Essa estratégia pode apresentar riscos para aluno que não entende objetivo do uso de referências.
Muitos estudantes que vão fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em novembro já planejam citar a Constituição Federal, Drummond, Bauman e outros “repertórios coringas” em suas redações, seja qual for o tema proposto.
Segundo professores ouvidos, essa estratégia — que tem se tornado cada vez mais comum entre os jovens que já estão familiarizados com o tipo de texto e com as competências do exame — pode ser um tiro no pé para quem não sabe aplicar devidamente os repertórios socioculturais.
De acordo com a cartilha da redação do Enem, divulgada anualmente pelo Inep, é considerado repertório sociocultural “uma informação, um fato, uma citação ou uma experiência vivida que, de alguma forma, contribui como argumento para a discussão proposta”.
Esse é um dos elementos que devem contar obrigatoriamente no texto e que compõe a competência 2, que vale 200 dos mil pontos máximos da redação. (Entenda mais abaixo). Mas, se a referência for feita da maneira errada, pode custar ao aluno pontos de outras competências.
Abaixo, entenda se e como referências como essa devem ser feitas, e como evitar a perda de pontos em outros elementos do texto.
Como a redação é avaliada
Formato
A redação do Enem deve ser uma dissertação argumentativa com proposta de intervenção. O texto deve ser organizado em parágrafos que discorram, por meio de argumentos e referências externas, sobre o problema apresentado no tema. Além disso, o autor precisa apresentar no texto uma sugestão de como solucionar o problema.
Competências
Ao todo, a redação vale 1000 pontos. Estes pontos podem ser alcançados pelo candidato que cumpre adequadamente com as 5 competências obrigatórias. São elas:
Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.
Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.
Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.
Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.
Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.
Essas competências têm seus próprios elementos obrigatórios e valem 200 pontos cada. O candidato que respeitar todos estes elementos alcança a tão sonhada nota 1000.
Repertório sociocultural
Um dos elementos que pode ajudar ou impedir o aluno de conseguir 200 pontos na competência 2 é o uso de repertórios socioculturais na argumentação do texto.
O candidato pode citar livros, filmes, músicas, notícias ou outros elementos que tenham relação com o tema.
Para fins de validação da nota, é preciso colocar no texto apenas uma referência, mas o autor pode usar mais de uma se desejar — desde que os elementos contribuam para o desenvolvimento ou defesa da ideia apresentada no texto.
Mesmo que a cartilha da redação apresente o repertório cultural de uma maneira simples, muitos candidatos acreditam que referências mais formais podem pesar na nota.
Mateus Leme, professor de redação da Oficina do Estudante, avalia que, atualmente, não é bem assim, mas explica que isso já ocorreu no passado.
Muitos anos atrás, o Enem dava maior valor para repertórios de uma cultura mais erudita, como filósofos e sociólogos, e não valorizava tanto elementos da cultura popular. Mas, nos últimos anos, os elementos de cultura popular são tão valorizados quanto autores renomados da filosofia, da sociologia ou da história. — Mateus Leme, professor de redação.
Por isso, o professor diz que não faz diferença na nota se o aluno cita um influenciador social ou um acontecimento midiático recente, em vez de referenciar historiadores, por exemplo. Isso, claro, desde que a referência esteja dentro do tema proposto.
Referências "coringas"
Ainda assim, muitos alunos se preparam para o Enem com base em repertórios mais formais e até optam por estudar referências mais “versáteis”.
Segundo professores, algumas das referências que têm aparecido repetidamente nas redações são:
Constituição Federal de 1988
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU
Zygmunt Bauman (filósofo e sociólogo)
Carlos Drummond de Andrade (poeta e cronista)
Machado de Assis (escritor)
Platão (filósofo e matemático)
Jessé Souza (escritor e sociólogo)
“Não é que o uso de referências como estas seja incorreto. O candidato pode e deve usar qualquer repertório que consiga amarrar com a argumentação do tema. O que não deve acontecer é ser uma referência forçada ou uma citação genérica”, avalia Mateus Leme.
Definir um autor ou uma referência previamente para utilizar na redação sem saber qual será o tema proposto pode prejudicar o candidato.
Não é uma boa estratégia se definir uma referência obrigatória. Se o repertório não tiver relação com algum aspecto do tema, não vai contar para a nota. Então, é melhor o aluno se valer de conhecimentos de outras disciplinas, o que também é válido, e valorizar outros saberes que ele já tem. — Felipe Leal, professor de redação do Curso Anglo.
Com isso, mesmo que o candidato pontue no aspecto do repertório, na competência 2, ele pode acabar perdendo pontos na argumentação, avaliada da competência 3.
"A citação ou referência precisa dialogar com o texto, reforçar alguma ideia do próprio autor, da problemática do tema, ou mesmo sobre a propósta de intervenção. Portanto, decorar um repertório que pode não ser relacionável a nada disso numa eventual redação não é um risco válido", completa Felipe Leal.
E a Constituição?
O repertório cultural mais comum nas redações do Enem é a Constituição Federal, segundo os professores.
Isso acontece porque o texto constitucional brasileiro é muito amplo, o que lhe confere uma versatilidade muito apreciada pelos candidatos do exame, e o torna facilmente relacionável à diversas propostas de texto.
Os temas da redação são sempre relacionados à direito. Por isso, é possível pensar em citações [da Constituição] que quase sempre conseguem ser feitas, e é muito difícil que haja um tema do Enem em que a Constituição não possa entrar. — Felipe Leal, professor de redação.
O mesmo cuidado deve ser tomado quando a Carta Magna for usada no texto. "Só citar a Constituição nominalmente não é o suficiente para reforçar uma argumentação. Se o objetivo do aluno for usá-la no texto, que seja algo mais específico e detalhado. Ou, em último caso, opte por uma referência mais conhecida", aconselha Mateus Leme.
Os professores explicam que o principal é não entender a redação como algo pré-delimitado.
"O tema é específico e o tamanho do texto é limitado, mas aquele ainda é um espaço para o aluno mostrar sua originalidade e a legitimidade de suas ideias. Não vale a pena arriscar justamente essa oportunidade para dar vez a um repertório específico que, na maioria das vezes, o aluno só decorou", finaliza Mateus Leme, da Oficina do Estudante.
Fonte: G1